Sobre elevadores e cuscuzes
- LULA VIEIRA
- 12 de jan. de 2024
- 3 min de leitura
Atualizado: 27 de jun. de 2024

Há algum tempo visitei o Washington Olivetto no prédio novo onde se instalara. Era esses chamados edifícios inteligentes onde tudo funciona através de robôs. Não há mais recepcionista, mas um painel que te reconhece (ou não) e autoriza sua entrada. Você fica sem ter ninguém para falar inutilidades sobre o tempo ou um comentário sobre futebol.
Um tédio.
Ainda mais agora que a conversa sobre temperatura enseja discussões altamente filosóficas sobre a hecatombe universal, a guerra e a finitude da vida. Nada disso.
A máquina te olha, te reconhece, murmura um falso desejo de boas vindas e te encaminha para o elevador. E o elevador, sem nenhum botão, tem agora aquela voz feminina universal anunciando que fechou a porta, estamos subindo e que já chegamos. “Elevador subindo” ... “Portas fechando”.
Foi o primeiro assunto com o anfitrião. A chegada robótica. E começamos a pensar num jeito de tornar mais – digamos – humana essa recepção. Gravações que pelo menos se aproximassem um pouco mais das boas vindas de antanho. “E aí, Lulão, você por aqui de novo? ... Cuidado que seu Wuoshinton tá de lua hoje... também o Corinthians, né?” Chegamos a pensar até em vôos mais ousados : “ muito bonito...atrasado outra vez!” , “você fica muito bem de vermelho” ou até mesmo intimidades: “Margarete já subiu, estava com cara de muito puta da vida, será que o Carlos aprontou de novo?”
Pensando bem, este é um grande incentivo para o uso da escada. Já imaginou entrar no elevador e ouvir a voz feminina dizendo: “continua engordando, não é?”
O problema é que elevador vai para o térreo, para o primeiro ou segundo andares. Não adianta mandá-lo à merda nem a lugares piores que ele não vai. Bem, justifiquemos o título da coluna.
Cuscuz entrou na moda.
Uma fajutérrima e desnecessária enquete realizada entre gourmets amadores e desconhecidos numa coluna dita especializada colocou o cuscuz paulista como um dos piores pratos da culinária nacional. Uma injustiça e uma prova que, se depender da opinião pública, sertanejo universitário é música.
Poucos pratos se aproximam do cuscuz paulista na generosidade de sabores, na delicadeza rude (sim, é possível) de suas surpresas. Um bom cuscuz paulista mistura alhos com bugalhos e esconde em suas texturas pequenos gestos de afeição que se aproximam de carinhos do ser amado. A verdadeira materialização daquilo que os franceses chamam de amuse-guele. Um beijo no paladar. Uma cosquinha nos sentidos. Claro que estou falando do estupendo cuscuz paulista, um prato que pouquíssimo restaurantes servem e que poucas pessoas fazem com a devoção que merece. E que alguns babacas desinformados colocaram na lista dos pratos menos apreciados entre os frequentadores de restaurantes.
Como se cuscuz paulista fosse prato para ser feito na casa de pasto de dona Epaminondas da vida. Cuscuz paulista, amigos meus, é daquelas comidas enganosamente simples, tipo omelete, coalhada árabe, bife acebolado, que parece fácil de fazer mas que quem entende a alma da cozinha sabe que é preciso amor, talento, ingredientes e sensibilidade para que o medíocre vire algo grandioso. Vou dar um exemplo: o polpetone do Jardim de Napoli que não passa de uma almôndega recheada com muçarela. Mas é uma obra de arte, assim como Guernica não vai além de uma pintura e Cidadão Kane, no fundo no fundo é um filme. Quem comeu um cuscuz paulista feito por quem conhece o que está fazendo, entende o que eu digo. E me permitam uma arrogância que até não faz parte do meu perfil.
Sou um puta de um fazedor de cuscuz paulista.
Tem gente que viaja só para vir à minha casa comer cuscuz. Tenho arruinado a reputação de outros fazedores de cuscuz, alguns até renomados. Poucas coisas me dão mais prazer do que fazê-lo num sábado, rodeado de amigos e com uma garrafa de vinho aberta perto do fogão.
Antes que eu me esqueça: hoje é meu primeiro dia por aqui. Quero agradecer sensibilizado o tempo que você perdeu comigo lendo minha primeira crônica aqui neste quintal. Não posso lhe prometer nada muito além disso, um papo absolutamente desnecessário sobre coisas totalmente desimportantes. Em breve estarei de volta, prometendo falar de coisas que não merecem mais do que alguns segundos na fila do elevador. Isto é, que não mereceriam nada além disso, caso ainda houvessem filas de elevadores.
Lula Vieira é Escritor, jornalista, radialista, editor, professor e um dos publicitários mais premiados da história da propaganda no Brasil.
Já foi eleito profissional do ano por 6 vezes pela ABP- Associação Brasileira de Propaganda e pelo Prêmio Colunistas.
Recebeu mais de 300 prêmios de propaganda, entre os quais Leões de Ouro, Prata e Bronze no Festival de Cannes, Lâmpadas de Ouro, Prata e Bronze no Festival da Associação Brasileira de Propaganda, Clio Awards, Festival de Nova York, Profissionais do Ano da Rede Globo, Festival de Gramado, Festival de Propaganda do Canadá, Prêmio Colunistas.
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